quarta-feira, 13 de maio de 2009

Zen e a Arte do Aqui-e-Agora

O termo japonês Zen (em chinês Ch'an) é a forma abreviada de Zenna, derivado do chinês Ch'an-na, que por sua vez vem de Dhyanameditação em sânscrito. Em coreano, é chamado de Sŏn; em vietnamita, chama-se Thien.

O Ch'an ou Zen é uma das principais escolas do buddhismo, difundido principalmente na China (inclusive Hong Kong e Taiwan), Coréia, Japão e Vietnã. Muitos mestres chineses e japoneses consideram o Zen como parte do buddhismo Mahayana, enquanto alguns autores coreanos preferem classificá-lo como um veículo à parte do Hinayana e do Mahayana.

O buddhismo Zen é baseado na idéia de que, já que todos os seres sencientes têm uma natureza búddhica, para atingir a iluminação é apenas necessário descobrir este buddha interior. Já que você já é um buddha, você está iluminado no momento em que entender sua verdadeira natureza. Digo que o Zen é mal entendido porque as pessoas muitas vezes acreditam que este "descobrimento" da natureza búddhica interior pode ser atingido sem trabalho. Este não é o caso. A prática Zen real é muito disciplinada e muitos anos de estudo devem necessariamente preceder a liberação "súbita" na verdade.

(Hsing Yün, Only a Great Rain)

Parece paradoxal que o Zen, a escola de meditação do Extremo Oriente que mais enfatiza o irracional, atraia mais os intelectuais do que os não-intelectuais. No entanto o Zen, como todas as escolas do buddhismo, tem uma base racional. Não depende nem da fé nem de dogmas petrificados, mas somente da experiência direta e da observação sem preconceito. Como uma escola buddhista, contudo, o Zen tem seu alicerce nos insights comuns a todas as escolas buddhistas, sem os quais o Zen não seria Zen. Essa base comum repousa na experiência, isto é, naquela área onde a ciência e o misticismo se encontram. A única diferença entre esse dois campos de experiência é que a verdade da ciência — sendo dirigida aos objetos externos — pode ser provada de maneira "objetiva", ou melhor, demonstrada, enquanto o misticismo, dirigido ao sujeito, pertence à experiência "subjetiva". O Zen, como todas as escolas buddhistas, se mantém à parte das opiniões pré-concebidas, dogmas e artigos de fé, juntamente com tudo que normalmente recebe o nome de "religião".

(Lama Anagarika Govinda, O Budismo Vivo e o Mundo Contemporâneo)

O monge chinês Nan-ch'uan P'u-yan (jap. Nansen Fugan, 748-835) caracterizou esta escola com quatro aspectos:

  • kyôge-betsuden: transmissão especial de mente a mente ou de coração a coração (jap. ishin-denshin), fora do ensinamento ortodoxo;
  • furyû-monji: não-dependência de escrituras sagradas;
  • jikishi-ninshin: apontar diretamente ao coração-mente humano;
  • kenshô-jobutsu: realização da própria natureza, tornar-se buddha.

Segundo a história tradicional, esta transmissão teria se originado na Índia,

durante uma palestra a uma grande assembléia na montanha Gridhrakuta, que reunia mais de mil e duzentos discípulos arhat (homens santos que atingem o nível de nirvana); [o Buddha Shakyamuni,] com um sorriso inspirador em sua face, elevou o braço, segurando apenas uma flor de lótus dourada. Neste momento, houve um silêncio total.

O que o Mestre quis dizer com isso? Nenhum dos discípulos arriscou-se a dar nenhuma interpretação e, durante esse longo momento de impasse, seu discípulo Mahakashyapa respondeu-lhe com outro sorriso misterioso. Ninguém da assembléia entendeu o sentido e significado do feito de Buddha e, mais tarde, ele anunciou que o mais profundo Dharma da verdade tinha sido transmitido ao discípulo Mahakashyapa.

Desde então, durante vinte e oito gerações (quase mil anos), ocorreu essa transmissão de "mente a mente" até que Bodhidharma [jap. Bodai Daruma, 470-543], um patriarca indiano, levasse essa tradição à China, durante a dinastia Han. Em 527, o patriarca fundou a escola de Dhyana dentro do templo Shao-lin (onde se pratica kung-fu), como uma escola diferenciada do buddhismo e que veio a se consolidar mais tarde. A palavra Dhyana foi traduzida para o chinês como Ch'an-na ou abreviadamente Ch'an, que é o estado que propicia quietude da mente, desapego em relação à nossa preocupação e às necessidades imediatas. O Ch'an se desenvolveu rapidamente na China, tornando-se, dentro do buddhismo, um ramo independente do pensamento filosófico, tendo exercido influência nas artes, na cultura e nos costumes chineses. [...]

[M]uitos monges Ch'an não acendem incenso, não reverenciam estátuas de Buddha e chegam inclusive à ousadia de queimar as estátuas numa fogueira, prevenindo-se dos rigores do inverno. A maneira dos monges Ch'an é fascinante, cheia de humor e perspicácia. Seu enfoque está na compreensão imediata, no despertar interior, transpondo toda barreira lógica dualista e as regras impostas pelo padrão religioso e cultural. A sutileza da poesia e da pintura chinesa carrega exatamente o brilho do Ch'an.

(Hsing Yün, O Início de Tudo)

Por quase setecentos anos, a meditação (dhyana) buddhista já era praticada na Índia, quando foi, por volta do segundo século d.C., introduzida na China. Mas, somente após três séculos, o buddhismo foi suficientemente integrado no ambiente chinês a ponto de criar algo diferente, próprio à nova cultura que o adotou. O modelo arquetípico dessa integração foi a personagem de Puti Damo (P'u-t'i Ta-mo), mais conhecido no Ocidente como Bodhidharma, um mestre indiano buddhista, considerado como primeiro Patriarca ou Ancestral do buddhismo Ch'an. Independentemente da existência real ou não de Bodhidharma, sua figura e as lendas que surgiram a partir dele formam o ambiente mítico das origens da Escola de Meditação nos países do norte asiático.

(Do prefácio de Ricardo Sasaki em Nuvem Vazia)

Depois do estabelecimento do Ch'an no monastério Shao-lin, originou-se a linhagem chinesa de monges patriarcas, ou ancestrais. A partir do sexto ancestral chinês, Hui-neng (638-713), o Ch'an absorveu muitos ensinamentos do taoísmo e contou com vários monges sucessores (jap. hassu).

Se seguir a verdade básica e a deixar ser tão espontânea como ela é, então compreenderá o que não tem começo nem fim, penetrando o universo. Isso é muito sutil e complicado. Os taoístas chama-n de conhecimento dos sábios, os confucionistas de comunicação espiritual e os buddhistas de iluminação silenciosa. Todos são termos para indicar a verdadeira consciência, a acurada consciência, a grande consciência, a consciência primordial. A consciência sem esta percepção é chamada de falsa consciência. A não ser que a falsa consciência seja eliminada, ela obscurecerá a verdadeira percepção. [...] Mesmo quando o obstáculo da dúvida é removido, há ainda o obstáculo do princípio, que é ainda mais pernicioso para o caminho. O obstáculo é causado pelo apego individual e parcialidade, o que impede a compreensiva percepção. O obstáculo dos confucionistas é a materialização, o obstáculo dos confucionistas é inexistência, o obstáculo dos buddhistas é o vazio. [...]

Todos aqueles obstruídos pelos três obstáculos da materialização, da inexistência e do vazio são incapazes de se reconciliar com os três ensinamentos do confucionismo, do taoísmo e do buddhismo. Daí resultam diferenças sectárias e disputas. Os confucionistas criticam a inexistência dos taoístas; os taoístas criticam a vacuidade dos buddhistas; os buddhistas criticam a senda dos confucionistas — e assim vai infindavelmente, para trás e para frente. Não compreendem que a base é realmente uma só, mesmo que as doutrinas sejam diferentes. A percepção deles está dividida porque estão obstruídos pelos seus princípios. O obstáculo da materialização leva à ilusão, o que torna difícil o despertar. O obstáculo da inexistência leva ao definhamento, no qual não há realismo. O obstáculo do vazio leva ao quietismo, que reverte para o niilismo. Os antigos sábios eram realistas todavia abertos, vazios todavia realistas. Viam que o vazio não é o vazio, que o vazio não esvazia coisa alguma. Este é o caminho supremo. É alcançado pela integração. Somente por sucumbirmos diante do obstáculo do princípio que não conhecemos a isso. Deste modo, os discípulos do caminho devem ser cuidadosos. [...]

Na ausência de compreensão, toda a sorte de argumentos diferentes, opiniões e teorias surgem, resultando em diferentes escolas e seitas, cada uma sustentando um ponto de vista e repudiando outros. Teimosamente agarradas às suas teorias, elas atacam umas às outras; cada uma sustentando o seu ponto de vista, elas argumentam e asseveram as suas próprias doutrinas. Elas todas querem ser protetoras do caminho, mas embora não o digam, elas vão aos extremos. A mente que compreende o caminho é inteiramente imparcial e verdadeira.

(Lü-yen)

[O] propósito do treinamento Ch'an é clarear nossa visão a fim de conquistarmos a visão clara sobre nossa verdadeira identidade. O Ch'an nos capacita a transcender nossa natureza humana e realizar a natureza de Buddha. Séculos atrás, nossa escola de meditação Ch'an foi fundada por dois grandes homens: o primeiro patriarca, Bodhidharma, que veio do Ocidente para a China, e Hui-neng, o sexto patriarca, nascido na China. Por causa desses dois homens, o Ch'an floresceu, espalhando-se pela China e por muitas terras distantes. E qual foi o mais importante ensinamento de Bodhidharma e Hui-neng? "Livrem-se do egoísmo! Livrem-se dos pensamentos que poluem a mente!" Se estas instruções não forem seguidas, não será possível nenhum sucesso na prática do Ch'an. [...]

Muitas pessoas começam o treinamento Ch'an pensando da seguinte forma: "Bem, já que tudo é maya ou ilusão samsárica, então, não importa o que eu faça, ou como eu faça, a única coisa importante é atingir o nirvana. Assim, não há essa coisa como o bem o mal. Eu farei aquilo que quiser. Não importa o que fazemos." O Ch'an é um ramo da religião buddhista e, como buddhistas, devemos aderir aos preceitos éticos. Se estivermos ou não no samsara, devemos obedecer aos preceitos. E, além disso, devemos seguir estritamente as regras de disciplina que governam nosso treinamento. Vamos começar com as regras de treinamento:

À medida que há vários métodos que podem ser seguidos, antes de começar a segui-los, antes de começar qualquer um deles, um praticante devem possuir os quatro requisitos básicos. Ele ou ela deve: [1] compreender a lei da causalidade; [2] aceitar as regras de disciplina; [3] manter uma inabalável fé na existência da natureza de Buddha; [4] estar determinado a ser bem sucedido em qualquer método que escolha.

(Hsü Yun, Nuvem Vazia)

Após Hui-neng, o Ch'an dividiu-se em duas correntes, uma do norte e outra do sul. A corrente do norte, que enfatizava a teoria da iluminação gradual, declinou rapidamente. Já a corrente do sul, que enfatizava a iluminação súbita, floresceu especialmente durante a dinastia T'ang (618-907) e no início da dinastia Song (960-1279). Esta doutrina tinha como o base o Lankavatara Sutra, texto central da filosofia idealista Yogachara. A corrente do sul deu origem a diversas linhagens chamadas de cinco casas e sete escolas (jap. goke-shichishû):

  1. Ts'ao-tung (jap. Sôtô) [I]
  2. Yung-men (jap. Unmon) [II]
  3. Fa-yen (jap. Hôgen) [III]
  4. Kuei-yang (jap. Igyô) [IV]
  5. Lin-chi (jap. Rinzai) [V]
    Lin-chi Yang-ch'i (jap. Rinzai Yôgi) [VI]
    Lin-chi Huang-lung (jap. Rinzai Ôryô) [VII]

Após a perseguição ao buddhismo iniciada pelo imperador taoísta Wu-tsung em 845, o buddhismo chinês teve muitas perdas. Mais tarde, o Ch'an tornou-se muito eclético, fundindo-se com a escola da Terra Pura (chin. Ching-t'u) e formando a tradição predominante até hoje no buddhismo chinês. No Japão, a única escola Zen que continua mantendo elementos Terra Pura é a linhagem Rinzai Ôbaku, levada ao Japão em 1644 pelos monges Yi-ran (jap. Itsunen) e Nagasaki.

[As escolas Terra Pura e Zen] complementam-se muito bem, dado que a primeira ensina a humildade de depender do Buddha e a segunda ensina a sabedoria de depender de si próprio.

(Hsing Yün, Budismo)

Em 1659, os monges desta tradição estabeleceram-se em Uji (próximo a Kyôtô) graças à chegada do monge Yin-yuan (jap. Ingen, 1592-1673) com vinte discípulos e dez artesãos. Eles construíram o Mampuku-ji no monte Ôbaku. Atualmente, esta escola possui dez subdivisões, aproximadamente 18 mil templos e monastérios e conta com cerca de 200.000 seguidores.

O Ch'an atingiu o seu auge com os monges Ma-tsu Tao-i (jap. Baso Dôitsu, 709-788), Pai-chang Huai-hai (jap. Hyakujô Ekai, 720-814), Te-shan Hsuan-chien (jap. Tokusan Senkan, 781-867), Tung-shan Liang-chieh (jap. 807-869), Chao-shou Ts'ung-shen (jap. Jôshû Jûshin, 778-897) e Lin-chi I-hsuan (jap. Rinzai Gigen, ?-866/7).

Na terceira geração da transmissão após Hui-neng, houve o mestre Zen Tao-i e seu discípulo, o mestre Zen Pai-chang. Estes dois homens corajosamente modificaram o sistema monástico prevalecente e transformaram as diretrizes que estavam em vigor desde que o buddhismo entrara na China. Assim eles criaram um sistema monástico verdadeiramente chinês. Na época, Pai-chang e seus discípulos foram injuriados por outros seguidores do buddhismo, acusados de terem quebrado os sabiam seus oponentes que foi por causa do sistema tramado por Pai-chang que o buddhismo conseguiu ter transmitido por tanto tempo depois disso. Este sistema de diretrizes foi transmitido através dos tempos até o presente e é seguido pelos templos e monastérios buddhistas, tanto na China quanto na exterior. Além disso, ele influenciou a sociedade chinesa posterior e seu sistema político, desempenhando grande papel em ambos.

(Nan Huai-Chin, Breve História do Budismo)

As linhagens que mais se destacaram na China foram a Lin-ch'i e a Ts'ao-tung. A primeira linhagem, Lin-ch'i, enfatiza o uso dos casos públicos (chin. kung-an, jap. kôan), histórias com expressões paradoxais que procuram apontar a natureza búddhica instantaneamente, "aqui e agora". Entre as principais coleções de kôans, estão a Passagem sem Portão (jap. Mumonkan), o Registro do Penhasco Azul (chin. Pi-yen-lu, jap. Hekiganroku), o Tsung-jung-lu (jap. Shôyôroku) e uma coleção coreana de Mil e Setecentos Kôans (cor. Yom-sang).

Os kôans não representam a opinião pessoal de um só homem, mas o princípio mais elevado, que nós e as centenas de milhares de bodhisattvas dos três reinos e das dez direções recebemos de igual maneira. Este princípio concorda com a fonte espiritual, ajusta-se ao significado do misterioso, destrói o nascimento-e-morte e transcende as ilusões. Não se pode entender por meio da lógica; não se pode transmitir com palavras; não se pode explicar mediante a escrita; não se pode medir com a razão.

(Isshu Miura e Ruth F. Sasaki, The Zen Koan)

Kôans são o método Zen de demonstrar a verdade direta e concretamente, sem recorrer à lógica ou à razão. Refletindo intimamente a seu respeito e despertando para seu sentido profundo, você viria a compreender o Zen. [...] Um mestre Zen disse: "O Zen é como um homem pendurado pela boca de um galho no alto de uma árvore. Suas mãos ou seus pés não conseguem alcançar nenhum ramo. Sob a árvore, outro homem pergunta: 'Qual a mais profunda verdade dos ensinamentos de Buddha?' Se ele não responder, faltará ao dever. O que ele deve fazer?"

(Philip Kapleau, Zen-Budismo)

O kung-an [jap. kôan], praticado especialmente pela escola Lin-chi [jap. Rinzai], consiste numa frase ou estória que é paradoxal e não tem aparentemente uma resposta lógica. Há milhares de kung-ans. O método não consiste apenas em tomar uma frase paradoxal e tentar resolvê-la. Mas é exercido dentro de um contexto, muito controlado, entre discípulo e mestre, onde este último dá ao aluno um kung-an específico que o leva para meditar o resto do dia, semana, mês ou ano. Isso é feito dentro de uma estrita disciplina de mosteiro e sob completa confiança do discípulo no mestre. Diariamente, ou mesmo várias vezes ao dia, o aluno vai levar sua resposta ao mestre e receber sua devida retribuição, seja a resposta estúpida ou sábia. O paradoxo tem como um dos objetivos quebrar o discurso lógico e racional e fazer surgir no discípulo uma resposta intuitiva. A resposta deve ser iluminada, pois equivale a um insight na realidade das coisas. Seu objetivo último é o de conseguir, através de uma frase, gesto ou pergunta, acordar a natureza original do praticante. Um flash de claridade que acaba por derrubar muitas das barreiras que impedem o completo despertar.

(Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo)

A finalidade suprema dos kôans pode ser vislumbrada nesta história, uma amostra de humor Zen moderno a respeito de um discípulo que mandava ao mestre relatos fiéis de seu progresso espiritual. No primeiro mês, o aluno escreveu: "Sinto a expansão da consciência e a unidade do universo." O mestre deu uma olhada no bilhete e jogou fora. No mês seguinte, o aluno escreveu: "Finalmente descobri que o divino está presente em todas as coisas." O mestre pareceu desapontado. Na terceira carta, o discípulo escreveu com entusiasmo: "O mistério do um do muito foi revelado ao meu olhar assombrado." O mestre bocejou. A carta seguinte dizia: "Ninguém nasce, ninguém vive, ninguém morre, porque o eu não existe." O mestre ergueu as mãos em desespero.

Passou um mês, dois, cinco, um ano inteiro. O mestre achou que era a hora de lembrar ao aluno que ele tinha o dever de informá-lo sobre seu progresso espiritual. O discípulo respondeu: Estou só vivendo a vida. E quanto à prática espiritual, de que serve?" O mestre leu a resposta e exclamou: "Graças a Deus ele entendeu!" Essa história reflete o que o Zen ensina sobre a perfeição das coisas como são. A garça branca na neve á uma garça branca na neve; o corno negro à meia-noite é na verdade ele mesmo.

(Jack Kornfield, Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja)

Outro método é o hua-t'ou (jap. watô) que procura estimular a dúvida como objeto de contemplação. Isto é feito através de perguntas que não possuem uma resposta lógica, por exemplo:

  • Quem sou eu?

  • Quem está meditando?

  • Um cachorro possui natureza búddhica?

  • Quem está cantando o nome de Buddha?

  • Qual é o som de uma só mão batendo palmas?

  • Como era meu rosto antes de mais pais nascerem?

[O hua-t'ou] consiste de uma pergunta que é colocada constantemente para a consciência. Um exemplo disto é: "Quem sou eu?" A diferença com o kung-an é que não é necessariamente uma frase paradoxal, apesar de sua resposta não ser obviamente racional. O aluno deverá tomar esta pergunta e colocar toda a energia na investigação. Tal método só é bem-sucedido se a pessoa realmente dedicar toda sua vida e energia à investigação.

(Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo)

Hua-t'ou significa "palavra cabeça" e podemos contrastar o hua-t'ou com o hua-wei, que significa "palavra cauda". Se um cachorro cruzasse nosso caminho, então, antes que pudéssemos ver o corpo do cachorro, veríamos sua cabeça. E, depois de termos visto seu corpo, veríamos sua cauda. Assim, a cabeça ou hua-t'ou é o ponto no qual o pensamento se origina — o ponto anterior à sua entrada no "corpo" da consciência do ego. A cauda é o pensamento subseqüente. [...] O que, então, o hua-t'ou? É uma afirmação designada e concentrar nossos pensamentos sobre um único ponto, um ponto que existe na "cabeça" da mente original, um ponto imediatamente anterior à entrada do pensamento em nossa consciência de ego. É um pensamento "fonte". Examinemos o hua-t'ou: "Quem é que agora repete o nome do Buddha?" De todas as questões hua-t'ou, essa é a mais poderosa. Agora, este hua-t'ou pode ser colocado de forma muito diferente, mas todas as formas indicam uma questão básica. "Quem sou eu?" Não importando como a questão é colocada, a resposta deve ser encontrada no mesmo lugar onde ela se origina: na fonte, na natureza de Buddha. O ego não pode respondê-la. Obviamente, respostas rápidas e fáceis são inúteis. [...]

Desnecessário dizer, uma hua-t'ou jamais deveria se degenerar numa expressão vazia. Muitas pessoas pensam que podem enganar o hua-t'ou, enquanto permanecem envolvidas com alguma outra coisa. Enquanto suas mentes estão em outros lugares, seus lábios dizem: "Quem está repetindo o nome do Buddha, quem está repetindo o nome do Buddha? Quem está repetindo o nome do Buddha?" Essa é a forma dos papagaios mal-humorados, não dos praticantes Ch'an. O hua-t'ou tem significado. É uma questão que tem uma resposta, e devemos estar determinados a encontrar a resposta. Eu sei que "Quem sou eu?" soa como uma questão simples que poderíamos responder sem dificuldade. Mas não é uma questão fácil de ser respondida. Freqüentemente, é extremamente intrigante.

(Hsü Yun, Nuvem Vazia)

"Pequenas dúvidas levam a pequenos despertares. Grandes dúvidas levam a grandes despertares." Sem perguntas, não obtemos respostas. Sem dúvidas, não temos pontos de acesso a novas informações. Quem tem certeza de tudo não aprende nada. Nunca tenha medo de fazer uma pergunta, já que, definitivamente, o Dharma pode responder a todas as questões. No buddhismo Ch'an, as dúvidas são utilizadas como técnica de meditação. Os mestres Ch'an nos aconselham a sondar e explorar as sensações de dúvida. Por centenas de anos, eles têm dito que as áreas mais obscuras do nosso ser são fontes incríveis de energia que não aproveitamos. Vastos estados de samadhi (concentração) podem se descortinar se ultrapassarmos as palavras e mergulharmos fundo nas reservas primordiais de maravilhamento e dúvida que jazem no fundo do nosso ser. As perguntas, na meditação Ch'an, são elaboradas para que nos aprofundemos nessas jazidas de prodígio e sabedoria. Os mestres Ch'an aconselham a fazer amizade com as dúvidas. Sugerem também que nos perguntemos: "Como era meu rosto antes de nascer? Quem é esse ser que está cantando o nome do Buddha?" [...]

Os praticantes do Ch'an devem aprender a se deixar guiar pelo "não-pensamento". O não-pensamento é a mente do principiante, que encara todas as situações sem preconceitos e sem desejo por um resultado predeterminado. O não-pensamento é a mente original que reage à vida sem cobiça, raiva ou ilusão. O não-pensamento é a pura pureza interior que já é a natureza búddhica. Aquele que age inspirado por essa natureza não é diferente de um Buddha. [...] Em sua, para ver a natureza búddhica, deve-se abandonar a ilusão e não ter desejo nem apego. Dessa forma, será possível "respirar com o mesmo nariz que o Buddha". Um dia, na época da dinastia T'ang, o mestre Ch'an Chih-wei (?-680) recitou o seguinte poema a seis discípulos:

Não se aferre aos pensamentos
Pois pensamentos são como o rio da vida e da morte
E fluem apenas rumo aos vastos mares dos seis reinos.
A única forma de se libertar dessa corrente
É não se apegar às próprias opiniões.

Seu discípulo Hui-chung respondeu, também em versos:

Todos os pensamentos brotam da ilusão,
Sua natureza é a única coisa que não tem começo nem fim.
Quando se compreende isso,
A corrente de pensamentos cessa por si só.

Mestre Chih-wei disse:

Nossa natureza é vazia,
Nossa individualidade é gerada por condições da ilusão.
Como deter a ilusão?
Retorne ao assento do vazio.

Hui-chung replicou:

O vazio é o verdadeiro corpo;
Como poderia a individualidade existir?
Não é necessário deter a ilusão quando sabemos
Como utilizar o barco da sabedoria
Para navegar a corrente de nossos pensamentos.

Mestre Chih-wei ficou tão satisfeito com a resposta que, no mesmo instante, nomeou Hui-chung abade de seu templo.

(Hsing Yün, Budismo)

A outra linhagem, Ts'ao-tung, enfatizava a prática da meditação sentada (chin. tso-ch'an, jap. zazen). Esta prática não é uma "meditação" propriamente dita, nem um método para alcançar a iluminação, mas um estado de mente alerta, sem pensamentos ou focalização. Existe também a meditação em pé, ou kin'hin.

[Quanto ao zazen,] za significa sentar e zen é uma transliteração do chinês ch'an, o qual, por sua vez, é também uma transliteração do sânscrito dhyana, que significa meditação. Zazen é, assim, sentar-se em meditação simplesmente. Partindo-se de uma estabilização da mente através de uma prática de observação da respiração, passa-se a seguir ao "simplesmente sentar-se" [jap. shikantaza]. E isto é feito com aquela exata "plena atenção não-reativa" que mencionamos acima. Adota-se aqui o modo "simultâneo" de atenção. Tudo que aparecer diante da consciência deve ser percebido, mas sem envolvimento. O "simplesmente sentar-se" é a pura atenção a todos os fenômenos que vão acontecendo.

(Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo)

Em zazen, você não faz o que faz objetivando algo. Você pode sentir-se como que fazendo algo especial mas, na verdade, está simplesmente expressando sua natureza verdadeira; é a atitude que aplaca seu mais profundo desejo. Praticar o zazen com algum objetivo não é a prática verdadeira. Se você continuar esta prática simples todos os dias, obterá um poder maravilhoso. Uma coisa maravilhosa antes de ser atingida, mas nada especial uma vez obtida. É simplesmente você mesmo, nada especial.

(Shunryu Suzuki, Zen Mind, Beginner's Mind)

Estar concentrado em algo talvez seja importante, mas apenas ter a mente muito concentrada não é zazen. É um dos elementos da prática, mas a serenidade da mente também é necessária. Portanto, não intensifique a atividade dos cinco órgãos dos sentidos. Deixe-os soltos. É assim que liberamos nossa mente verdadeira.

(Shunryu Suzuki, Nem Sempre É Assim)

A prática do zazen é o segredo do Zen. O zazen é difícil, eu sei. Mas, praticando cotidianamente, é muito eficaz para ampliar a consciência e desenvolver a intuição. O zazen não libera apenas uma grande energia; é uma postura de despertar. Durante sua prática, não se deve procurar atingir seja lá o que for. Sem objetivo, o zazen é apenas a concentração sobre a postura, a respiração e a atitude de espírito.

(Taisen Deshimaru, La Pratique du Zen)

A ordem coreana Chogye enfatiza um kôan para apontar o verdadeiro ser — "Quem você é? Não sei."


Zen, o Buddhismo Ch'an no Japão

Durante o período Kamakura (1185-1333), o buddhismo Ch'an foi introduzido no Japão, onde passaria a ser chamado de buddhismo Zen. Em 1191, o monge japonês Myôsan Eisai (ou Yôsai, Zenko Kokushi, 1141-1215) levou a linhagem Lin-chi da China para o Japão, onde passou a ser chamada de Rinzai. Em 1227, outro monge japonês, Eihei Dôgen (ou Shôhyô Daishi, 1200-1253) levou a linhagem chinesa Ts'ao-tung, que passou a se chamar Sôtô em japonês.

A linhagem Rinzai tornou-se popular entre os samurais, shôguns e aristocratas, influenciando o código de honra dos guerreiros ou Bushido. Atualmente ela possui nove subdivisões e conta com aproximadamente 7 mil templos e monastérios.Já a escola Sôtô foi difundida principalmente entre os camponeses graças ao trabalho do monge japonês Keizan Jôkin (1268-1325). Hoje, a escola Sôtô tem nove subdivisões e possui aproximadamente 14 mil templos e monastérios.

Kakua foi o primeiro monge japonês a estudar o Zen na China, mas seu nome não está mencionado na lista dos fundadores do Zen-buddhismo japonês, pois ele nada deixou a não ser uma nota musical. Quando Kakua voltou ao Japão, depois de estudar vários anos na China, o Imperador, que ouvira dizer que ele aprendera uma nova doutrina, mandou chamá-lo à sua presença para interrogá-lo sobre ela. Quando o Imperador perguntou-lhe o que era Zen, Kakua fez uma profunda reverência, tirou das dobras de seu quimono uma flautinha, soprou uma nota, guardou o instrumento, fez uma nova reverência e desapareceu. Nunca mais ninguém ouviu falar dele.

(Ricardo Mário Gonçalves, Textos budistas e Zen-budistas)


Myôsan Eisai Zenji e a linhagem Rinzai

Eisai nasceu em Bichu, tornou-se monge aos onze anos de idade e recebeu a ordenação completa aos quatorze. Ele estudou no monastério Enryaku-ji da escola Tendai e mais tarde fundou o ramo Yojo, um dos treze ramos Taimitsu — os ensinamentos esotéricos da escola Tendai.

Em 1168, Eisai viajou para a China a fim de estudar os ensinamentos da escola T'ien-t'ai. Ele retornou ao Japão depois de cinco meses, trazendo trinta sutras. Em 1187, Eisai novamente viajou até a China, mas com o objetivo de chegar na Índia. Como não conseguiu os documentos requisitados pelas autoridades chinesas da dinastia Song, ele acabou permanecendo na China durante quatro anos, sem conseguir viajar para a Índia. Durante esse período, Eisai estudou com um mestre Ch'an da escola Lin-chi e recebeu sua transmissão, tornando-se patriarca desta linhagem. Retornando mais uma vez ao Japão, Eisai procurou transmitir seus ensinamentos dentro da escola Tendai sem procurar fundar uma nova escola. Em 1199, perseguido pelos monges do monte Hiei, ele fugiu para Kyôtô a fim de chegar em Kamakura.

Eisai foi bem recebido por Hôjô Masako e seu filho, o Shôgun Minamoto No Yoriie, que o encarregou da construção do templos Jufuku-ji em Kamakura e do Kennin-ji em Kyôtô. Eisai também fundou o templo Shofuku-ji em Hakata e também ensinava as doutrinas das escolas Tendai e Shingon. A partir de 1211, ele começou a promover plantações de chá, especialmente em Uji, para difundi-lo entre os monges. Eisai deixou trabalhos muito significativos para o Zen e para a cultura do chá no Japão. Entre suas principais obras, destacam-se os Combustíveis da Vida Monástica (jap. Shukke Taikô), o Zen como Meio de Defesa da Nação (jap. Kôzen Gokokuron), o Pedido em Favor do Renascimento do Buddhismo no Japão (jap. Nihon Buppô Chûkô Gammon) e o Chá como Meio de Cultivar a Vida (jap. Kissa Yôjô-ki).

Acredita-se que o grande santo buddhista Dengyô Daishi trouxe o chá da China para o Japão no ano 805 d.C. Em todo caso, tomar chá no Japão estava diretamente associado com o buddhismo e mais particularmente com o Zen, que havia incorporado muitos elementos da doutrina taoísta. Os monges desta ordem tomavam chá em uma única gamela diante da imagem de Bodhidharma. Assim o faziam como espírito reverente e consideravam o ato de tomar o chá como um santo sacramento. Foi esse rito Zen, de estrita natureza religiosa, que veio finalmente a desenvolver no Japão a cerimônia do chá. A cerimônia do chá sofreu três transformações em seiscentos ou setecentos anos de sua existência. Passou por um estágio médio-religioso, um estágio voluptuoso e finalmente um estágio estético. No estágio religioso, o monge buddhista Eisai escreveu um panfleto intitulado A Influência Salutar da Ingestão do Chá, onde afirmou que essa bebida tinha o poder de afastar os maus espíritos. Ele foi o instrutor de um cerimonial ligado à adoração dos ancestrais, acompanhado da batida de tambores e queima de incenso. Eisai escreveu esse tratado com a intenção de converter Minamoto no Sanetomo, apaixonado por vinho, e esforçou-se por demonstrar a superioridade do chá sobre o suco da uva.

(F. Hadland Davis, Mitos e Lendas do Japão)

A escola Rinzai destacou-se durante os períodos Yoshino (1336-1392) e Muramachi (1392-1482), especialmente nas região de Kyôtô e Kanto. O ramo específico do monge Eisai, chamado Rinzai Ôryô, acabou desaparecendo, mas o ramo Rinzai Yôgi continua existindo até hoje.


Eihei Dôgen Zenji e a linhagem Sôtô

[Dôgen, que pertencia a uma família da alta aristocracia de Kyôtô,] perdeu seu pai aos dois ou três anos, e sua mãe morreu quando tinha sete ou oito anos. Parece que ela, em seu leito de morte, o chamou, pedindo-lhe que seguisse a vida monástica buddhista, rezasse por seus pais e se dedicasse à salvação de todos os seres. O fato da perda, em criança, de seus pais, parece ter marcado a sua vida, segundo alguns biógrafos, como, aliás, confessaria posteriormente.

[Em 1213], torna-se discípulo de Kôen, abade do Tendai, cortando o cabelo e recebendo a ordenação de monge buddhista. [...] No monastério do monte Hiei, dedicava-se então firmemente à vida religiosa e ao estudo das escrituras sagradas do buddhismo. Todavia, especialmente uma questão o preocupava crucialmente: "as doutrinas esotéricas e exotéricas ensinam que todos os seres sencientes têm primordialmente a natureza búddhica; se é assim, por que todos os buddhas e bodhisattvas demoram para obter a iluminação, e dedicam-se às práticas ascéticas?" Em busca de solução para este problema, Dôgen deixa o monte Hiei em 1214. Procura o monge Koin, que residia no templo de Mii-dera, também da escola Tendai, [...] [que teria respondido assim à pergunta de Dôgen:] "Não se pode responder facilmente a este problema. Eu conheço um aspecto teórico ortodoxo desta questão, mas não atingi o fundo do problema. É melhor que vás ter com Eisai no Kennin-ji."

[Eisai] é considerado como o fundador do Zen japonês, estabelecendo-o como um ramo distinto das demais escolas buddhistas no Japão. [...] É incerto que Dôgen mantivesse algum contato direto com Eisai, mesmo porque, no outono de 1214, este residiu em Kamakura e, logo depois, faleceu. Não há narrativas neste sentido. Seja como for, a figura de Eisai marcou a concepção monástica de Dôgen. [...] Entrando no templo Kennin-ji, Dôgen colocou-se sob a orientação de Myôzen que, na ocasião, tinha 34 anos. Após a morte de Eisai, Myôzen sucedeu-o como novo superior do templo.

(Eduardo Basto de Albuquerque, O Mestre Zen Dôguen)

Dôgen viajou à China em 1223, onde recebeu a transmissão da linhagem Tsao-tung. Após retornar ao Japão em 1227, ele viveu por no monastério Kennin-ji, em Kyôtô. Em 1233, Dôgen estabeleceu o Kannon-sonri-in em Fukakusa, onde ensinava a meditação Zen.

Depois, foi para o monastério Kôshô-[hôrin]-ji e, finalmente, para um monastério na cidade de Echizen (atual Fukui). Lá desenvolveu o monastério Daibutsu-ji (1243), que depois passaria a ser chamado Eihei-ji, tornando-se um dos dois principais centros da escola Sôtô Zen. O outro centro é o monastério Sôji-ji, que se tornou Zen quando o monge Keizan Jôkin tornou-se abade em 1321. Após ter sido destruído por um incêndio em 1898, o Sôji-ji foi transferido para da cidade de Ishikawa para Yokohama, onde está atualmente.

Entre as principais obras de Dôgen, destacam-se suas Regras Gerais para a Prática de Meditação (jap. Fukan-zazengi), o Tesouro do Olho do Dharma Verdadeiro (jap. Shôbôgenzô Keisei Sanshoku) em 95 volumes, a História do Caminho (jap. Bendôwa), as Instruções para o Mestre da Cozinha (jap. Tenzo Kyôkun),os Trezentos Kôans e Comentários (jap. Nenpyô Sanbakyu Soku), o Significado da Verdade do Dharma para a Proteção da Nação (jap. Gokoku Shôbôgi), as Regras para a Prática do Caminho (jap. Bendôhô), as Regras para os Monges (jap. Chiji Shingi) e as Regras para a Biblioteca Monástica (jap. Shuryô Shingi).

Dôgen Zenji
Dôgen Zenji
Keizan Jôkin
Keizan Jôkin

Os sucessores de Dôgen foram Ejô (1198-1280), Giin (1217-1300), Keizan Jôkin (1264-1325) e Gasan Josekin (1276-1366). Ejô compilou muitas instruções de seu mestre no Shôbôgenzô Zuimonki. Keizan Jôkin, outro autor muito importante do Zen japonês, deixou o Registro da Transmissão da Luz (jap. Denkôroku) e as Recomendações para o Zazen (jap. Zazen Yôjinki), entre outros.

[S]eria um sério erro pensar que o treinamento Zen consiste apenas em shikantaza ou no uso de kôans. O Zen é solidamente fundado, em sua prática e em seus detalhes, na perspectiva Yogachara, uma das duas grandes vertentes do Mahayana e, assim sendo, o estudo é de grande importância no verdadeiro treinamento Zen. Infelizmente, este fato tem sido consideravelmente esquecido, principalmente quando abordado pelos ocidentais, os quais, desprezando a evidência histórica e o exemplo dos mestres, apegam-se a frases fora de contexto e imaginam ser o estudo algo supérfluo e desnecessário. Se é verdade que Bodhidharma, o lendário fundador do Zen, disse que seu treinamento estava para além das escrituras, por outro lado nunca disse que se deveria desprezá-las. O próprio Zen nasce de uma linguagem de mestres devotados ao estudo do Lankavatara Sutra, um texto Yogachara estudado pelos praticantes Zen e grandemente estimado em todos os mosteiros.

John Blofeld, em Gateway to Wisdom, nos dá um importante alerta a este respeito: "Entre praticantes Ch'an (Zen) do Ocidente, há alguns que repudiam a necessidade do aprendizado por causa de sua impaciência em enfatizar que o Ch'an é uma doutrina 'sem palavras' — apesar dos milhões de palavras que foram escritas sobre ele nos últimos anos. Este erro pode ser ao fato de terem tirado alguns ditos dos mestres Ch'an mais iconoclastas para fora de seus contextos originais, confundindo ensinamentos dados em circunstâncias particulares como sendo uma regra universal. Pessoalmente, ainda estou para encontrar um mestre de meditação, chinês ou tibetano, de qualquer escola, que não insista sobre um profundo conhecimento das doutrinas mahayana como um pré-requisito necessário para a conquista do objetivo; apesar de também ensinarem que, antes do despertar, vem um estágio no qual todas as doutrinas e práticas podem ser descartadas."

Uma outra diferença entre a meditação Zen, tal como praticada no Japão, e outras técnicas, é a formalidade que cerca sua prática, provavelmente uma influência da conhecida formalidade da cultura japonesa. O modo de se entrar na sala de meditação, de andar, de sentar-se, a posição das mãos e outras partes do corpo, tudo é precisamente regulamentado. Estes detalhes, bastante secundários em outras regiões, se transformam em partes importantes da prática Zen no Japão.

(Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo)

O Zen influenciou profundamente a cultura japonesa, como a cerimônia do chá (jap. chanoyu), as poesias (jap. haiku) a caligrafia (jap. shodô), a pintura (jap. sumi-e), o teatro (jap. ), os arranjos florais (jap. ikebana), o bonsai, a jardinagem, o artesanato, a cerâmica e a arquitetura.

Na antiguidade chinesa, toda a arte taoísta encontrava sua síntese no emblema em forma de disco perfurado no centro: o disco representa o céu ou o cosmo, enquanto o vazio de seu centro simboliza a Essência única e transcendente. Alguns destes discos são ornamentados com a figura dos dois dragões cósmicos — análogos aos princípios completares yang e yin, o "ativo" e o "passivo" — que giram em torno do centro perfurado, como se tentasse apreender o intangível vazio. A concepção artística é semelhante à das paisagens de inspiração buddhista ch'an, onde todos os elementos — montanhas, árvores e nuvens — apresentam-se apenas para enfatizar, por contraste, o vazio, do qual parecem ter emergido naquele instante, como ilhas efêmeras no vasto oceano. Nas mais antigas representações de paisagens chinesas, gravadas em espelhos de metal, em urnas ou lajes funerárias, seres e objetos parecem anular-se diante do jogo dos elementos: vento, fogo, água e terra. Para expressar o movimento das nuvens, das águas e do fogo, os artistas servem-se de diversas formas e meandros sinuosos; as rodas são concebidas como um movimento ascendente da terra; as árvores definem-se menos por seu contorno estático que por sua estrutura, que revela o ritmo de seu crescimento. A alternância cósmica de yang e yin, do ativo e do passivo, transparece em toda forma ou composição.

Tudo está em plena concordância com os seis preceitos formulados no século V de nossa era pelo célebre pintor Hsieh Ho: [1] o espírito criativo deve identificar-se com o ritmo da vida cósmica; [2] o pincel deve expressar a estrutura íntima das coisas; [3] a semelhança será captada pelo contorno; [4] os aspectos particulares das coisas serão expressos pelas cores; [5] os agrupamentos devem ser ordenados segundo um plano; [6] a tradição deve perpetuar-se em seus modelos. Estes princípios revelam claramente que o que está na base de toda obra é o ritmo e sua expressão imediata, a estrutura linear, e não o plano estático e os contornos plásticos das coisas, nos quais se apóia a pintura tradicional do Ocidente.

A técnica da pintura a nanquim desenvolveu-se a partir da escrita chinesa, que por sua vez deriva de uma verdadeira pictografia. O calígrafo chinês maneja seu pincel sem apoiar a mão ou o braço, modulando o traçado por um movimento que parte do ombro. Esta prática confere à pintura seu caráter ao mesmo tempo fluido e conciso. Esta arte não conhece o rigor da perspectiva, centrada em um único ponto; o espaço é sugerido por sua espécie de "visão progressiva": ao se contemplar uma pintura "vertical", suspensa na parede à altura de um observador sentado, os olhos como que "escalam" os graus de distância que se estendem de baixo para cima; diante das pinturas "horizontais", a contemplação se desenrole linearmente, e o movimento do olhar segue o mesmo sentido. Esta "visão progressiva" não separa inteiramente o espaço do tempo e, por esta razão, está mais próxima da realidade vivida que as perspectivas artificialmente centradas em um só "ponto de vista". Ademais, todas as artes tradicionais, quaisquer que sejam seus métodos, tendem à síntese de espaço e tempo. Ainda que a pintura tao-buddhista não indique a claridade pelo jogo de luz e sombra, suas paisagens são, entretanto, plenas de uma luminosidade, que invade todas as formas como um oceano celeste de nácar resplandecente: é a beatitude do Vazio, que é luz pela ausência de toda obscuridade. [...]

Um pintor japonês ou chinês nunca representará o mundo como um cosmo acabado, ou uma obra fechada, e neste aspeto sua visão das coisas é a mais diferente possível da de um ocidental, mesmo daquele ocidental de visão tradicional, que sempre concebe o mundo de uma maneira mais ou menos "arquitetônica". O pintor do Extremo Oriente é um contemplativo; para ele, é como se o mundo fosse feito de flocos de neve, que subitamente se cristalizam e se dissolvem com a mesma rapidez: sempre consciente do não-manifestado, os estados físicos menos solidificados são, para ele, mais próximos da realidade subjacente aos fenômenos; eis o sentido desta observação sutil da atmosfera que admiramos na pintura chinesa, a nanquim e aquarela. [...]

A própria técnica da pintura a nanquim, com sua caligrafia de signos fluidos, que só se cristalizam com perfeição pelo efeito de uma intuição superlativa, correspondente ao "estilo" intelectual do buddhismo Zen, que busca provocar, por meio de todos os recursos possíveis, após uma crise interior, a súbita compreensão, o eclodir da iluminação, o satori dos japoneses. Assim, seguindo o método Zen, o artista deve exercitar-se na caligrafia pictórica até dominá-la, e logo, abandoná-la, esquecê-la por completo. De modo análogo, o pintor deve concentrar-se em seu tema e, então, desligar-se dele; somente assim a intuição poderá agir sobre seu pincel. Deve-se ressaltar que este procedimento artístico é muito diverso daquele adotado em outro ramo da arte buddhista do Extremo Oriente, a saber, a arte hierática, cujos modelos derivam da Índia, e que se concentra na imagem sagrada do Buddha. Longe de pressupor sempre uma intuição súbita e ocasional, a criação de um ícone ou de uma estátua do Buddha baseia-se essencialmente na fiel transmissão dos protótipos; é sabido que a imagem sagrada compreende proporções e sinais especiais atribuídos pela tradição ao Buddha histórico. A eficácia espiritual desta arte é salvaguardada pelo caráter unívoco e quase imutável de suas formas. A intuição do artista pode ressaltar algumas qualidades implícitas dos modelos, mas a fidelidade à tradição e à fé serão suficiente para perpetuar a qualidade sacramental da arte.

As duas formas de arte acima citadas apresentam este traço comum, ou seja, ambas exprimem, fundamentalmente, um estado do ser que repousa em si mesmo. Este estado é sugerido, na arte hierática, pela atitude do Buddha ou do bodhisattva, e por suas formas impregnadas de beatitude interior; já a pintura de paisagens expressa este mesmo estado por um conteúdo "objetivo" da consciência, isto é, a visão contemplativa do mundo.

(Titus Burckhardt, A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente)


Se praticarmos a iluminação suprema com o corpo, estaremos observando os preceitos. Se os expressarmos com a boca, isso será o Dharma. Se o praticarmos com a mente, então será o Zen. Ainda que possa ter três diferentes funções, seu propósito é o mesmo. O rio Huai e rio Han têm nomes diferentes, mas não é diferente a natureza de suas águas. Os preceitos não são diferentes do Dharma, que é o mesmo que o Ch'an. Se o corpo, a fala e a mente forem exercitados em conjunto, os três estarão unidos no coração.

(Wei-k'uan, citado por Hsing Yün em Contos Ch'an)

No buddhismo Zen há um ritual para se entrar no caminho de Buddha. Consiste em expressar o arrependimento informal, em buscar refúgio no tesouro triplo e em jurar praticar os três preceitos coletivos puros e os dez preceitos proibitivos. Esse ritual baseia-se na idéia de arrependimento, que significa, no buddhismo, total abertura de coração. se nos abrirmos completamente, consciente ou inconscientemente, estamos prontos para ouvir a voz silenciosa do universo. [...]

No ritual de arrependimento informal, cantam-se os seguintes versos: "Todo o karma continuamente criado por mim desde os tempos antigos, por meio da cobiça, da raiva e da auto-ilusão que não tem princípio, nascido de meu corpo, de minha fala e de minha mente, agora eu o confesso, com toda a sinceridade." No buddhismo, arrependimento não significa pedir desculpas a alguém por algum erro ou engano. O arrependimento não é um estágio preliminar para entrar no mundo de Buddha ou para se tornar uma boa pessoa. Se o arrependimento for interpretado desse modo, caímos, simplesmente, na armadilha do dualismo; uma grande lacuna é criada entre nós e o objeto, seja ele qual for, de que estamos tentando nos arrepender, e isso sempre causará certa confusão. A paz verdadeira não pode ser encontrada no dualismo. No buddhismo, arrependimento significa nós mesmos nos deixarmos conduzir para estarmos presentes bem no centro da paz e da harmonia. Ele é a abertura total de nosso coração, que nos permite ouvir a voz dos limites de irradiação de nossa consciência. O próprio arrependimento torna nossa vida perfeitamente pacífica. [...]

O tesouro triplo — "busco refúgio no Buddha, busco refúgio no Dharma, busco refúgio na Sangha" — é a base dos preceitos buddhistas. Os preceitos, no buddhismo, não são um código moral que alguém ou alguma coisa exterior a nós mesmos nos obriga a seguir. Os preceitos são a natureza de Buddha. [...] Os três preceitos coletivos puros, abstenção de tudo o que é mau, de tudo o que é bom, purificação da mente, são os ensinamentos de todos os buddhas. As duas primeiras normas, abster-se de tudo o que é mau e praticar tudo o que é bom, são preceitos. A terceira norma, purificação da mente, consiste em ter fé sincera no tesouro triplo. Buscar refúgio no Buddha, no Dharma e na sangha significa purificar a mente. [...]

Os dez preceitos proibitivos são: abstenção de tirar a vida; abstenção do roubo; abstenção do adultério; abstenção da mentira; abstenção do tóxico; abstenção da fala enganosa; abstenção do auto-elogio por meio da calúnia contra os outros; abstenção da avareza na outorga do Dharma; abstenção da ira; abstenção de injúria contra o tesouro triplo.

(Dainin Katagiri, Retornando ao Silêncio)

Dizemos que há um modo Rinzai e um modo Sôtô, a prática Hinayana e a prática Mahayana, o buddhismo e o cristianismo. Contudo, se você praticar qualquer um deles, como se estivesse saltando de um lado para outro do universo, nenhum o ajudará muito. Se tiver a compreensão correta de sua prática, tanto faz se tomar um trem, um avião ou um navio, você apreciará a viagem.

(Shunryu Suzuki, Nem Sempre É Assim)

Um monge perguntou para o mestre, "Mestre, por favor, me ensine o segredo do buddhismo."

"Ah sim, mas hoje tem muita gente, quando tiver mais ninguém, vou te ensinar", disse o mestre.

No dia seguinte, o monge chegou de novo, "Mestre, tem mais ninguém, me ensine agora."

"Ah, vem cá." E foi para o jardim. Aí o mestre disse:

"Está vendo? Esta árvore é alta e aquela outra é baixa. Este é que é o segredo do buddhismo."

(Ryotan Tokuda Igarashi, Psicologia Budista)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

O Ladrão e a Lua

Ryokan, um mestre Zen, vivia a mais simples e frugal das vidas em uma pequena cabana aos pés de uma montanha. Uma noite um ladrão entrou na cabana apenas para descobrir que nada havia para ser roubado. Entretanto Ryokan voltou e o surpreendeu lá.
- Você fez uma longa viagem para me visitar e você não deveria retornar de mãos vazias. Por favor tome minhas roupas como um presente.
O ladrão ficou perplexo. Rindo de troça, ele tomou as roupas e esgueirou-se para fora. Ryokan sentou-se nu, olhando a lua.
- Pobre coitado, gostaria de poder dar-lhe esta bela lua.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Trabalhando Duro

Um discípulo foi ao seu mestre e disse fervorosamente:
"Eu estou ansioso para entender seus ensinamentos e atingir a Iluminação! Quanto tempo vai demorar para eu obter este prêmio e dominar este conhecimento?"
A resposta do mestre foi casual:
"Uns dez anos..."
Impacientemente, o estudante completou:
"Mas eu quero entender todos os segredos mais rápido do que isto! Vou trabalhar duro! Vou praticar todo o dia, estudar e decorar todos os sutras, farei isso dez ou mais horas por dia!! Neste caso, em quanto tempo chegarei ao objetivo?"
O mestre pensou um pouco e disse suavemente:
"Vinte anos."

Sem dualismo

"Parar nossa mente não quer dizer parar as atividades da mente. Isso significa que nossa mente impregna nosso corpo inteiramente. Com nosso espírito em sua plenitude, nós formamos com nossas mãos o "mudra"."

Dizemos que nossa prática deveria ser sem idéia de aquisição {ganho}, sem nenhuma expectativa, mesmo a de iluminação. Todavia, isto não significa simplesmente sentar-se sem nenhum objetivo. Esta prática sem idéia de aquisição se funda sobre o sutra Prajna Paramita. Se prestarmos atenção, entretanto, o sutra nos dará uma idéia de aquisição. Ele diz: A forma é vacuidade e a vacuidade é a forma." [I] - Mas se nos apegarmos a esta afirmação, nos arriscamos bastante em nos engajar em idéias dualistas: aqui a forma - e aqui a vacuidade, que experimentamos realizar através de nossa forma. Também "a forma é vacuidade e a vacuidade é forma" é ainda dualidade. Mas felizmente nosso ensinamento continua e diz: "a forma é forma e a vacuidade é vacuidade". [II] Aqui não há dualismo.

Quando achamos difícil parar nossa mente durante zazen e que continuamos tentando parar o fluxo de pensamentos, é o estágio de [I]. Mas, sempre praticando desta maneira dualista, chegamos pouco a pouco a unidade com nosso objetivo. E quando nossa prática se torna sem esforço, podemos parar nossa mente. É o estado [II].

Do livro Esprit Zen esprit neuf de Shunryu Suzuki